A Islândia, cenário do romance "A desumanização" (ed. Porto Editora), de Valter Hugo Mãe, entra na literatura do escritor através da música e da transcendência: «O primeiro islandês de quem eu gostei foi Hilmar Örn Hilmarsson, a quem dedico o livro».
«É um músico que hoje está mais pacificado, mas que era uma espécie de punk com espiritualidade. Era um indivíduo que auscultava a transcendência, e isso era-me muito motivador», explica em entrevista ao programa "Ensaio geral", da Renascença.
A par da energia do «rock experimental» de Hilmarsson, estava sempre presente «uma dimensão de alguma redenção, de alguma expetativa espiritual da existência».
«Parecia-me que se Deus, eventualmente, se quisesse pronunciar, a Islândia era o espaço reservado para isso. Se Deus pudesse ser um lugar na Terra, talvez fosse a Islândia. Inconscientemente fui guardando esta imagem», assinala.
O silêncio da ilha nórdica coabita com o incessante murmúrio que se ouve, vê e sente sob a terra, «uma espécie de sossego aflito»: «A iminência da erupção dos vulcões, o nevoeiro denso que parece palpável e que nos torna cegos, os temporais... tudo isto interrompe a ideia de solidão».
O escritor de 42 anos nascido em Angola vê a Islândia como «sinónimo de solidão, que acaba por ser problematizada pela espiritualização. Ou seja, é uma solidão aparente».
O romance fala de uma «interrogação existencial» através da história de uma menina que «conta o que fica depois da perda de uma irmã gémea», nota o presidente do Centro Nacional de Cultura, Guilherme d'Oliveira Martins, numa narrativa em que «a tristeza se debate com a força da vida».
«A morte parece ser o negativo da vida, mas não é a absoluta não existência. A morte é, de facto, uma companhia. As pistas para o "ter estado" da pessoa que já não está acabam por se reformular e, de alguma forma, continuam a ser uma presença», sublinha Valter Hugo Mãe.
E porquê "A desumanização"?: «Nasce de alguma frustração minha ao perceber que os nossos traços humanos têm de ser disciplinados, em prol da resistência, da sobrevivência, como se precisássemos de ser menos gente para conseguirmos continuar a ser gente».
Por outras palavras: «Passarmos a ter saudades de nós mesmos, julgando que um dia fomos melhores pessoas e que a vida nos obrigou a destruir um pouco a humanidade que tínhamos».
As ilustrações evocam as auroras boreais da Islândia e conferem uma «dimensão da pureza» à narrativa.
Valter Hugo Mãe vê nos «monstros bonitos» desenhados por Cristina Valadas a «elevação das coisas feias a uma certa beleza», arriscando a possibilidade de «assacar coisas bonitas à fealdade e à dor».
Esta e outras propostas foram sugeridas no programa “Ensaio geral”, da jornalista Maria João Costa, que a Renascença transmite às sextas-feiras às 23h30, e que pode ser ouvido na íntegra na internet.
FONTE: Maria João Costa
Com SNPC/rjm
In Renascença
12.02.14
Com SNPC/rjm
In Renascença
12.02.14