sexta-feira, 23 de maio de 2014

«Tríptico»

«Tríptico» - TSF

O jornalista José Carlos Barreto lê «Tríptico», um poema de Herberto Helder.

Não sei como dizer-te que minha voz te procura/e a atenção começa a florir, quando sucede a noite/esplêndida e vasta. Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos/se enchem de um brilho precioso/e estremeces como um pensamento chegado. Quando, iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado/pelo pressentir de um tempo distante, e na terra crescida os homens entoam a vindima - eu não sei como dizer-te que cem ideias, dentro de mim, te procuram. Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros/ao lado do espaço/e o coração é uma semente inventada/em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia, tu arrebatas os caminhos da minha solidão/como se toda a casa ardesse pousada na noite.

- E então não sei o que dizer/junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio. Quando as crianças acordam nas luas espantadas/que às vezes se despenham no meio do tempo - não sei como dizer-te que a pureza, dentro de mim, te procura. Durante a primavera inteira aprendo/os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto/correr do espaço -

e penso que vou dizer algo cheio de razão, mas quando a sombra cai da curva sôfrega/dos meus lábios, sinto que me faltam/um girassol, uma pedra, uma ave - qualquer/coisa extraordinária. Porque não sei dizer-te sem milagres/que dentro de mim é o sol, o fruto, a criança, a água, o deus, o leite, a mãe, o amor, que te procuram.



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